No 91 - Ano VIII - Julho de 2003


Prof. Valdeci de Souza e Cristina Ramos

Prof. Valdeci de Souza e Cristina Ramos

O "Canyengue" e o "Choro"

Em finais de 1800, o canyengue, ou essência pura do tango, surgia nas calles da periferia de Buenos Aires, caindo no gosto popular. Cañengue  significa caminhar cadenciado, um bai-lar pitoresco de corpos quebrados e sensuais, movimentos cortados e mar-cados. Assim como foi conquistando corações argentinos e europeus, o tango eclodiu também no Brasil, mas com roupagem brejeira, aproximando o ritmo portenho do samba. Nascia, então, o "choro" ou "chorinho", o chamado "tanguito", através de Ernesto Nazareth e que, com seu primeiro sucesso, "Odeon", marcaria contraposição à tragicidade do tango argentino, com suas tiradas irônicas e, inclusive, temas ale-gres, alcançando notoriedade nacional através das composições de Chiquinha Gonzaga e Catulo da Paixão Cearense.

Tango canyengue e "chorinho" aproximam-se no seu jeito mais descon-traído em relação ao tango evoluído para o compasso 2 x 4, límpido e clássico. Seguem seus rumos nos salões da cidade, nos passos de bailarinos ágeis e entregues a cada ritmo, garantindo o brilho e man-tendo a artimanha de percorrer, ano após ano, reunindo adeptos que querem apren-der a bailar estes dois ritmos marcantes de próxima similaridade e distintos em suas personalidades.      

Regina Sant’Anna

 

Cantemos

 (Tango Brasileiro)       

Música:   Ernesto Nazareth                                     Letra:  Vinícius de Moraes  

Ai, quem me dera o meu chorinho
Tanto tempo abandonado
E a melancolia que eu sentia quando ouvia
Ele fazer tanto chorar
Ai, nem me lembro há tanto, tanto
Todo o encanto de um passado
Que era lindo, era triste, era bom
Igualzinho a um chorinho chamado Odeon

Terçando flauta e cavaquinho meu chorinho se desata
Tira da canção do violão esse bordão
Que me dá vida que me mata
É só carinho o meu chorinho
Quando pega e chega assim devagarzinho
Meia-luz, meia-voz, meio tom
Meu chorinho chamado Odeon

Ah, vem depressa chorinho querido, vem
Mostrar a graça que o choro sentido tem
Quanto tempo passou quanta coisa mudou
Já ninguém chora mais por ninguém

Ah, quem diria que um dia chorinho meu, 

Você viria com a graça que o amor lhe deu
Pra dizer "não faz mal, tanto faz, tanto fez
Eu voltei pra chorar com vocês"

Chora bastante meu chorinho teu chorinho de saudade
Diz ao bandolim pra não tocar tão lindo assim
Porque parece até maldade 
Ai, meu chorinho eu só queria
Transformar em realidade a poesia
Ai, que lindo, ai, que triste, ai, que bom
De um chorinho chamado Odeon

Chorinho antigo, chorinho amigo
Eu até hoje ainda percebo essa ilusão
Essa saudade que vai comigo
E até parece aquela prece que sai só do coração
Se eu pudesse recordar e ser criança
Se eu pudesse renovar minha esperança
Se eu pudesse me lembrar como se dança
Esse chorinho que hoje em dia ninguém sabe mais

 

Assim se tece a história

(20/03/1863-04/02/1934)

  Pianista, maior compositor de tangos brasileiros e demarcador de rumos para o choro, Ernesto Nazareth nasceu no Rio de Janeiro e aprendeu piano com a mãe, que tocava valsas, modinhas e principalmente polcas em saraus e reuniões. Depois da morte da mãe, em 1873, continuou estudando piano, e começou a compor. Sua primeira polca, "Você Bem Sabe", composta aos 14 anos, foi editada. Mais tarde começou a freqüentar rodas de chorões, e dali tirou a originalidade rítmica que marcou sua interpretação e se refletiu em suas composições. Influenciado também pelo maxixe, lundu, ritmos africanos e pelos chorões, Nazareth nunca aceitou totalmente essa influência, resistindo bastante em dar denominações populares a suas composições.

Músico de formação erudita, o máximo que se permitiu durante muito tempo foi classificar suas músicas como "tangos brasileiros", uma vez que o tango argentino e a polca eram as danças de salão da moda à época (década de 1880). Nazareth trabalhou e criou fama como pianista da sala de espera do cinema Odeon, para o qual compôs o tango "Odeon", uma de suas peças mais célebres, que ganhou uma popular transcrição para violão. Vários músicos de outros estados e países, quando visitavam o Rio de Janeiro iam ao Odeon para ouvir o seu pianista. No início da década de 20 empregou-se na Casa Carlos Gomes como demonstrador de músicas. Numa época ainda anterior ao rádio e com a indústria fonográfica incipiente, a única maneira de se conhecer as músicas era tocando. Sua função era tocar as partituras para que o cliente escolhesse qual levaria. Entre as partituras à venda constavam suas próprias composições.

Segundo os biógrafos, Nazareth era muito exigente com as pessoas que iam "experimentar" suas músicas, e freqüentemente mandava o possível comprador parar a execução. Se apresentou em diversas cidades do Brasil com êxito, mas no final da década de 20 já começava a dar sinais da surdez que se intensificou no fim de sua vida. Os abalos que sofreu com as mortes de sua filha e da esposa contribuíram para a deterioração de seu estado mental, sendo internado em 1933, morrendo no ano seguinte. Uma das primeiras composições que classifica como "choro" é a famosa "Apanhei-te Cavaquinho", um clássico nas rodas de choro, tocada em diversas formações instrumentais. Seu repertório para piano faz parte dos programas de ensino tanto do estilo erudito quanto popular, uma vez que Nazareth foi uma figura que atuou no limite entre esses dois universos. Vários discos com sua obra foram gravados desde a sua morte, além de biografias e até um CD-Rom, com dados de sua vida e obra. Suas peças mais conhecidas são "Brejeiro", "Ameno Resedá", "Bambino", "Dengoso", "Travesso", "Fon Fon", "Tenebroso".