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 Autora:  Graciela H. Lopez                                                                                                                                                         Trad.:  Raquel Mellman

É uma espécie de proteção, de porto seguro em meio a um temporal.  Digo temporal porque há momentos de nossa vida atual em que a sensação de tempestade, de desproteção e de ser somente números intercambiáveis, é muito intensa.  Sobram exemplos.  Até há bem poucos anos, quando havia menos delinqüência na cidade, podia-se abrir as portas dos edifícios a partir dos apartamentos através do porteiro eletrônico e não havia câmeras de vigilância.  Sem falar das casas de bairro que mantinham as portas dos fundos abertas para os amigos entrarem.

Adaptamo-nos com dificuldade a este mundo que tornou-se automatizado, controlado por números e vozes anônimas, onde (a não ser para os conhecidos) na verdade, não existimos para ninguém.  Temos números de clientes, de assinantes, de protocolo e de confirmação:  códigos e senhas.  Sentimos uma enorme perplexidade quando descobrimos que diante de qualquer reclamação, ao invés de encontrar uma pessoa, temos que nos contentar com um número.  "Preciso reclamar sobre... Então tecle o 112".

Mas os números, justamente por sua natureza contábil, não podem nos representar.  Apenas representam um indivíduo, ou seja, alguém substituível por outro qualquer, anonimamente, mas não uma pessoa.  Além de carregarmos nome e sobrenome, precisamos ser reconhecidos por alguma singularidade.  É o que nos faz humanos, em vez de objetos.  Queremos ser reconhecidos como antes, quando tínhamos nome e esse nome valia por si só.  Mas como isso acontece cada vez menos, e cada vez o mundo globalizado e enumerável nos torna mais anônimos, resta-nos criar pequenos refúgios, lugares confiáveis para ficar com os outros, reconhecidos e sem medo.

Para nós que bailamos tango, esta pequena proteção existe na milonga.

A milonga é muito mais do que um lugar de diversão e encontro.  É também uma bolha, um ninho especial onde não entra "o de fora" e onde, por algumas horas, estamos a salvo da inclemência cotidiana.  Assim como há gente que pertence a um clube, ou tem refúgio em sua família, nós também dispomos da milonga.  Em que lugar vou encontrar além de amigos, o calor de um abraço, esse abraço momentâneo, que consola e emociona em silêncio, sem exigir nada depois?

Por isso, a simples mesa da milonga, essa bobagem, esse pequeno lugar que nos oferecem quando entramos num baile, tem uma tremenda importância.  Se somos freqüentadores assíduos, essa mesa nos pertence.  Parece mentira a satisfação e a segurança que por momentos nos dá essa pequena mesinha que "habitamos" por algumas horas.  E há montões de histórias e também muitíssimas brigas por esse ínfimo território.  Ali se passam situações de poder e rivalidade, que talvez não tenham mais explicação que a grande necessidade de pertencer, de ter um lugar.  Sentir que pertencemos a um lugar não é uma questão concreta de espaço, mas às vezes pedir esse espaço concreto é a única coisa que podemos fazer.

E mesmo que nos coloquem na "melhor mesa", podemos ter noites (ou dias) de solidão e exclusão, porque não conseguimos jogar o jogo de todos.  Que fazer?  Apenas podemos repetir aquela humilde frase que diz: "Aqui não existo".  Às vezes a milonga me faz recordar a escola primária.  Evoco dias de felicidade nos quais encontrava perfeitamente com quem brincar ou conversar, achava os deveres fáceis ou a professora me elogiava. 

Mas havia outros momentos horríveis nos quais por alguma razão ficava fora da festa.  Não me emprestavam um lápis, ou algumas meninas cochichavam e não me contavam o segredo.  Pior ainda, esquecia a tabuada de 8.  Dias terríveis nos quais me sentia o "cocô do cavalo do bandido" e no meio de uma grande tragédia infantil, pensava que ninguém iria mais querer brincar comigo.  Quem não chorou nenhuma vez na escola?  Então eu ficava grudada na minha carteira, porque nem vontade tinha de sair para o recreio.  Ela me abrigava, até tudo passar.

E a mesa da milonga, com sua inocente presença e sua toalha surrada, torna-se às vezes esse santo refúgio, cúmplice de confissões e rancores, até que tudo passa e voltamos a bailar novamente.  Como não defendê-la?  Sequer a mesa ao lado é igual. Há quem precise "dessa" mesa, mesmo que para os demais isto soe por demais irracional e faça o garçom olhar de banda.  Mas é que a mesa não é qualquer mesa.  É a identidade, o pertencer, o nosso nome escrito num cartão que diz "reservado para".

Do meu pequeno e quadradinho lugar no mundo, vou ver passarem a vida, os amores e os encontros.  Os pés grandes e os mexericos, o vinho e os olhares.  Minha mesa pode ser amparo, mas também rampa de lançamento à aventura, ao jogo e à sedução, quando então, milagrosamente, consigo bailar justamente com quem mais gosto.