Suas pernas eram mágicas. Longas e desordenadas, estranhamente
irreverentes, descansavam em elegantes letargias para logo irromper
elétricas no meio do salão. Estavam carregadas de mistério: parecia que
mostravam, mas na realidade escondiam. "Quem sabe - comentávamos entre
as damas - talvez algum dia nos tire para dançar..." E então, enquanto
girávamos na pista com nossos fiéis seguidores - mais humildes, mais
discretos e também mais terrenos -, sempre deixavam uma tênue luz acesa
para ele... Era inútil: o Mago dançava com outro tipo de dama;
faltava-nos um certo brilho e sobravam primaveras...
Naquela milonga havia outra figura com quem tampouco dançávamos, só que
neste caso era nossa a falta de vontade. Era um estrangeiro que todos os
anos vinha a Buenos Aires. Um tipo alto, de pele azeitonada e olhar
intenso. Taciturno, usava camisas policromáticas; porém seu problema não
eram as roupas e sim seus olhos. Urgentes, perdidos, ameaçadores, pediam
para ser evitados. Batizamos o sujeito "el Rey de la milonga", por seu
esdrúxulo hábito de usar meias brancas. Eram os dois únicos homens com
quem não bailávamos: com um porque o evitávamos e com outro porque ele
nos evitava.
Acontece que um dia os dois começaram a sentar-se juntos. A dupla era
inacreditável, uma dessas estranhas cambalhotas do destino que só a
milonga é capaz de propiciar. Era possível vê-los dividindo a mesa em
profunda harmonia, quase sem se falar, como se já se conhecessem há
séculos. O Mago, elegante e sereno, com as pernas cruzadas à espera de
desatar seu feitiço. O Rei de la Milonga, de olhar ruminante, braços
cruzados à espera de cabecear para alguém que se dignasse sustentar a
mirada.
Por força do costume, o extravagante binômio deixou de ser interessante.
Ao menos até aquela noite...
Buenos Aires movia-se cansada ao compasso da primeira semana do ano. Eu
esperava. No dia anterior tinha dançado várias tandas com um moreno
musculoso de cabelos crespos, que as meninas imediatamente apelidaram de
Cassius Clay. A noite prometia e o calor lhe dava um toque desesperador.
Cassius chegou às três da manhã, quando eu já não podia mais ocultar a
impaciência. Dançamos uma tanda apenas correta e sem mais, me disse que
achava que não poderia ficar, que tinha que trabalhar... ou pelo menos
foi isso que entendi com meu inglês macarrônico. Sentei-me surpreendida
e enquanto comentava a situação com as colegas observei que o moreno se
aproximou da mesa da dupla mais famosa. Conversou algumas palavras com
ambos e olhou disfarçadamente para nossa mesa. O Rey consultou seu
relógio, o Mago negou com a cabeça e o moreno baixou os olhos. Em
seguida, os três sumiram.
Duas horas depois, quando eu já saía, notei que sobre meus sapatos de
sair na rua havia uma rosa, um cartão com o nome de "Baltasar" e uma
bolsa Louis Vuitton divina embrulhada para presente.
Dias mais tarde, lembrei-me que naquela noite alguém jurou ter visto
três camelos esperando na rua e aí eu entendi tudo.
(*) Publicado em "El Tangauta"
no 171, Janeiro 2009 |